o que é, o que é: Nasce quadrúpede, cresce em ternos, vigílias e orações, amadurece em templos, reflete em rodas de cantiga e dorme com o som da vida lá fora e, por fim, perece em meio a culturas e crenças? O homem. E ainda sim, não é capaz de conhecer sequer pequena parte do mundo.
há no homem a vontade, necessidade, obrigação, de convencer e de estar certo - e ser visto como certo. Assim nasceu a doutrinação e a declaração de guerra a tudo que é diferente. Isso tudo me faz pensar sobre como buscamos a atenção, buscamos ser vistos quase tanto quanto buscamos o amor. Não queremos o amor, muitos de nós ao menos não. Querem, na realidade, sermos escolhidos e vistos, mas apenas quando somos os certos.
desde antes do mundo ser como o vemos hoje, um pacto social não comunicado já existia. Uma irmandade de pensamento coletivo estagnada, como uma colmeia de abelhas, com níveis hierárquicos - e não irei comentar aqui o que isso me lembra, com certeza as bruxas de Salem iriam rir de tamanha ousadia, mas o objetivo deste texto nunca foi disseminar humor ácido e comentar de algo que não irá mudar, o passado.
os homens têm medo do desconhecido porque não podem controlá-lo, e conceber a ideia do não-controle-absoluto lhe parece um eufemismo, e portanto deve ser exterminado. Este pensamento se ramifica ao longo das gerações, e o ódio se dissemina como larvas na água - vivemos entre guerras por comida, território e crenças. O feudalismo e Idade Média não se foram tanto quanto julgávamos, afinal.
a religião e a mente coletiva baseada numa crença tão antiga quanto o próprio homem, talvez para preencher o vazio da insignificância, talvez para dar sentido para a vida, talvez para que os fins justifiquem os meios; antes mesmo que armas brancas fossem criadas, bombas desenvolvidas e a Terra deixar de ser algo plano e no centro do Sistema, a religião já perdurava por solos tão áridos.
apesar das tentativas incansáveis, o incontrolável, bom, continua sendo incontrolável no final do dia. A natureza segue seu curso indiferente do desejo do mundo dos homens. Há, por isto, um mundo que apenas as crianças - e por tempo contado no relógio, são capazes de adentrar, uma religião universal que apenas os homens não possuem. Talvez por sua pequenez e tamanho egocentrismo que não se comunica ou adentra a mente coletiva do mundo dos homens, está no intocável, quase no imaginário. Jovem demais para as correntes que o prendem à caverna apenas a deslumbrar e teorizar fervorosamente sobre as sombras e silhuetas, velho demais para existir no mundo das ideias de Platão.
a gaiola não protege o pássaro do mundo, o afasta dele. É uma pena que mesmo tantas gerações depois, tão pouco tenha mudado sobre as correntes que nos prendem a cavernas, podendo nada além de fanatizar sobre as sombras na parede frente a nós. A dor é mais embaixo quando sabemos que somos os responsáveis por nossa própria prisão e liberdade, mas que dificilmente conseguiremos a segunda opção em vida.
Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água, De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi coisa nenhuma, Nem procurei achar nada.
Alberto Caeiro
sinto profundo lamento por todos que se limitam a ser apenas um, quando somos tanto. Se você sabe tudo de si mesmo aos quinze, vinte, trinta anos, sinto muito. Eu, esses dias descobri meu nome, meu gosto favorito de chá e um dos meus livros favoritos. Mas há tanto ainda por explorar, não do mundo, de mim. Perpassei por tantas religiões até aqui; aprendi com todas elas. Com todos os que me ensinaram e que aprenderam comigo também.
vejo à mim mesma como aprendiz por toda a vida, afinal, alguém me disse um dia “se você não vive para servir, não serve para viver”, e estou aqui para ajudar e servir ao próximo, aprender e ensinar também. Nem tudo precisa ser um ponto final, vírgulas e ponto e vírgula também são bons.
seria tão triste mergulhar em um mesmo rio, e ser a mesma que mergulhou nele anos atrás. Sentir a brisa da mesma forma que senti ontem, amar da mesma forma que amei meu primeiro grande amor. Viver como vivi meu dia mais triste. Quando nos limitamos a ser uma única coisa, nos fechamos para um mundo de aprendizados, mas principalmente para uma vida que seja vivida, e não em constante contestamento e necessidade de provar e negar.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são. Sentir é estar distraído.
Alberto Caeiro
veja bem, isto não é uma declaração autônoma de guerra a religião e ao apoio sociohistório que ela representa ao inconsciente do homem, mas uma provocação a reflexão sobre o que realmente acreditamos e cremos, e o que acreditamos apenas porque outros acreditam. Até poucos séculos deuses gregos ainda eram venerados, o que nos diferencia deles?
por fim, e nem tão menos importante, não leve isto tão a sério. Compartilhe sua opinião nos comentários sem ser hostil, nem tudo é um ataque pessoal contra nós. Você pode pensar diferente e isto não significa que estou certa ou errada, apenas que sou. Assim como você é. Que bom, né? :)
Alice, teu texto me atravessou, daqueles que não pedem urgência, mas profundidade. Ele ecoa como as perguntas que fazemos olhando o teto de madrugada, ou o céu, ou uma xícara de chá esfriando enquanto o mundo gira lá fora.
Essa "religião universal que só os homens não têm" me parece mais próxima de uma escuta do que de uma crença, mais de presença do que de doutrina e talvez por isso, tão rara, porque exige menos certezas e mais entrega, e isso, o ego, coitado, não costuma permitir.
Fiquei pensando nesse trecho: "o incontrolável, bom, continua sendo incontrolável no final do dia". É quase um alívio ler isso, saber que há algo que escapa ao controle, e que talvez justamente por escapar, seja o que nos mantém humanos, ou mais que isso, vivos.
Parabéns pelo seu texto, que é farol e espelho, que aliás, não acusa, mas provoca com ternura, que não impõe, mas convida a pensar, a sentir, a perguntar, a não saber . . . e tudo bem.
No fim, talvez não seja mesmo sobre fé, mas sobre abertura, e nisso, como você disse, ser aprendiz é o que mais me faz sentido.
Com carinho,🍂
Ale