a arte de performar
acordo todos os dias com vontade de viver, mas ao tentar ser perfeita, falho miseravelmente.
quero fazer muitas coisas, e por isso não faço nada. Quero gravar vídeos para o YouTube -, mas minhas edições não serão boas e tampouco o áudio dos primeiros vídeos; quero muito fazer crochê -, mas não sei como começar, e não quero parecer iniciante. Quero voltar a tocar piano e viajar por entre as notas musicais e sentir as teclas na ponta dos dedos enquanto meu corpo entra em êxtase -, mas não toco a tanto tempo que estarei enferrujada e tocarei mal.
quando foi que passei a ter medo de não ser boa? E afinal de contas, boa sob quais parâmetros e para quê gente? Talvez a gente sinta tanta saudade da infância porque lá não tínhamos que ser bons, apenas éramos. Sem toda a pressão que colocamos sob nós, perpetuados e em um ciclo da sociedade. Queremos começar na academia, mas temos medo não das dores e sim dos olhares e por medo de cometer erros de iniciante. Vivemos uma vida pela metade por medo de ser iniciantes. Temos vergonha de cantarolar por não termos uma ótima voz, temos medo de começar a desenhar porque não seremos bons e produziremos grandes quadros logo de começo. Isso é tão triste.
há muita ânsia em nosso âmago, mas a necessidade de sermos perfeitos nos adoece e nos mata todos os dias que passam sem que façamos o que queremos fazer. Quantas vezes deixamos de fazer coisas que queremos, ou que precisamos, pelo simples medo de sermos vistos começando? Por medo de aparecer, por comentarem sobre nós e por não sermos tão bons assim?
quando foi que surgiu essa necessidade tão enraizada quanto o ato de respirar? Por Deus! Invejamos as crianças porque são livres. Já nós, estamos destinados a prisão da performance.
vivemos em um enorme palco teatral, com um público tão distante de nós que não conseguimos enxergar seus rostos, mas sabemos que estão ali. Nos observando, analisando e julgando. Há sob nós, um enorme holofote.
a peça começou. Está na hora de performar.
com apenas onze anos, desenvolvi anorexia. Me lembro de comer apenas uma maçã o dia todo, pois não era magra o suficiente, não tinha curvas o suficiente. Também lembro de chorar todos os dias de enxaqueca por me bater com a escova de cabelo, pois meu cabelo não era liso e sim ondulado-cacheado, e isso era inaceitável.
hoje me pergunto quando fui tocada pela primeira vez pela necessidade de ser algo. Não apenas uma criança que gostava de ler, mas uma super criança que não faz nada além de ler. Quando foi que passei a contar histórias com medo de não ser boa o suficiente para atrair a atenção dos ouvintes? Quando me tornei um palhaço com medo do palco?
alguém me diz a fórmula mágica para não ter tanto medo, para tentar não ser sempre algo. Apenas… Ser. Estar ali. Existir. Eu não mereço isso? Será que nasci quebrada e preciso agir como todos os outros ao meu redor?
comecei a olhar o mundo e me sentir nele de uma forma diferente quando precisei esconder minha atração por fantasia e por não saber diferenciar as crenças, mitos e lendas da própria realidade. Não é bom e nem ruim, é só… Diferente.
o concreto machuca a sola dos meus pés, o ar seco me seca as narinas e o barulho e necessidade de opinar me exaure. Me sinto desfalecer e desfazer em liquidez, como uma poça.
coloque uma placa sobre meu pescoço e me dê atenção. Todos nós precisamos de atenção, dê atenção para todos os meus colegas do circo! Por favor! Ninguém olha para o desagradável e a repugnante face do homem.
cresci criança, mas me tornei uma atração enjaulada. Bem-vindas ao século 21, aceitas um café instagramável e um salto que machuca nossos dedos e dá bolha aos pés, mas combina com nossa mini-saia?
que fique apenas entre nós, lhe suplico: Mas confesso que às vezes, só às vezes, quando me deito, gosto de me imaginar correndo na areia, sentindo ela por entre os dedos, rindo da sensação, com a brisa balançando e bagunçando meu cabelo. Gosto de me imaginar com um vestido longo e claro, caminhando por uma floresta ou campo.
Ali eu me sinto viva. Ali eu estou em casa. Não sou daqui, não pretendo ficar. Me leve embora, eu não pertenço aqui.
A gente precisa aprender a cuidar da nossa versão criança que ainda mora em nós e que pode ser livre pra começar e ser ruim, só ser. É aos poucos mas um dia vc vai estar na areia correndo e lembrar desses momentos que começou e foi horrível, pra te levar até lá
a gente tem medo de iniciar porque todo mundo já parece saber de tudo. esquecemos que para ser o melhor é preciso ser bom e para ser bom é preciso ser ruim e ter começado.
sinto saudades de ser criança e não ligar tanto para falhar.
ter medo de falhar é pedir pra se viciar em performar.
até quando não vamos nos permitir ser nada?