#01 querido diário
hoje eu falhei. Meu pescoço está sendo apertado pelas minhas próprias mãos, eu sou minha assassina. Eu sou meu fim.
hoje eu vi pela janela do ônibus, um piá na calçada com um buquê de flores. Fiquei o restante do caminho imaginando se encontrou a pessoa dona de algo tão lindo, se gostou e o que fizeram depois. Sem perceber, sorri. Feliz por alguém que nunca conhecerei, feliz sem saber o contexto e tampouco a sina. Será que faz parte do pedido de namoro ou de casamento? Como devem estar agora?
às vezes, sem me dar conta, estou observando a vida acontecer sem a necessidade de fazer parte dela. Gosto de acordar mais cedo no final de semana apenas para ficar deitada embaixo do cobertor e olhar para o teto em absoluto silêncio, apenas escutando o barulho da vida correndo solta lá fora. Quase que como separada por uma bolha invisível, a vida de um lado, eu e o completo silêncio do outro. Minha alma aprecia a observação da maneira mais absoluta possível, sem a vontade de opiniões; apenas um rio com peixes que não nadam contra a corrente.
neste exato momento alguém estará dando seu primeiro passo, e caindo de joelhos. Alguém está tirando um pudim do forno, e comemorando a sobremesa perfeita e com furinhos. Alguém foi aprovado na universidade dos sonhos, outros estão trancando ela. Não sou tão importante assim, sou completamente insignificante. Faço parte do todo - sem mais vontade de ser diferente e lutar contra tudo e todos; saibamos quais lutas guerrear, e não apenas seguir o fluxo contrário.
me sinto adoecida por estar em constante presença no mundo dos homens, urge em mim a obrigação primitiva de isolar-me na natureza, sem o dialeto mundano e opiniões sobre tudo em um corpo inflamado e roliço de informações inúteis.
acalma-me o coração e a alma saber que não sou tão importante assim, e que se morrer hoje, a primavera desabrochará da mesma maneira, porque assim tem de ser. O Sol ainda irá nascer e se pôr e o amor ainda persistirá. Não mudo a ordem dos acontecimentos e nem a existência da própria vida, e nem nunca quis. A grama nunca será mais verde para os que esperam. Esperam atenção. Esperam bajulação. Esperam ser além.
gosto de sentar com uma xícara de café em um banco e apreciar a vista, quase escondida por entre as árvores e arbustos. Ali é onde a minha vida acontece. Vejo as pessoas passarem, sinto a brisa bagunçar meu cabelo e balançar os galhos e chiar com as folhas. Posso passar minutos à fio apenas observando, sem pensamentos ou listas de tarefas que preciso concluir até o fim do dia, ali sou apenas eu. Apenas meu coração bate.
me pego olhando uma trilha de formigas carregando folhas para lá e para cá, crio histórias e fantasias sobre suas vidas, sua forma operante e que fim terá a pobre folha.
fui fadada por muitos anos a necessidade do controle sob a vida, e o peso que ela proporciona. A ânsia por controle vem do medo que não podemos controlar, mas afinal qual o grande problema do não-controle?
hoje levamos tudo para o pessoal, sempre como um ataque a nossa dignidade e imagem. Temos de defender nosso ponto de vista com unhas e dentes pois o mundo fora da caverna é perigoso e todos querem se estrangular. A releitura da história não é tão inovadora, afinal de contas, ainda agimos como homens primitivos das cavernas para nos comunicar com o outro.
me sinto exausta de sentir medo para interagir em um ambiente infestado com gás, onde qualquer fagulha é fogo e incendeia áreas enormes. A ideia do desconforto é, hoje, desconfortável e não mais cabível. Se algo é incômodo, é só rolar para baixo. Quê nos ensina isto, além da rapidez e facilidade com a qual podemos excluir completamente o que não nos agrada?
temos hoje um sério problema, a não prática da conversa e escuta. Somos rasos, de interações rasas e pouco afetuosas, relações humanas não são vídeos de até um minuto, com cortes inteligentes e uma boa edição. O frio na barriga que a paixão nos proporciona é desconhecida e temida em terras de concreto e tijolos. Preciso me lembrar diariamente de que nem tudo é um ataque para e sobre mim, nem todos são grosseiros - e se são, não é sobre mim. Não preciso ser assim, não quero -, não preciso responder de maneiras tão atravessadas ou me sentir insegura.
um dia irei morrer, mas a Lua irá nascer todos os dias depois disso. Não busco mais a felicidade, cultivo e semeio-a; não mais uma viajante em busca do amor e da felicidade, apenas alguém que deita na grama do seu próprio quintal, sem desejar mais a grama do vizinho que nem é tão mais verde assim.
você consegue escutar? Vamos ficar em silêncio, escute! É o som do coração pulsando por trás destas paredes grossas de cimento.
Que escrita linda, que texto perfeito